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Sala de aula em uma escola de surdos brasileira: visão capacitista, que força o aprendizado da língua oral com auxilio de tecnologias corretivas, prejudica o desenvolvimento de uma identidade linguística e cultural mais aprofundada entre os surdos. Divulgação/Gabriel Valentin, CC BY

Línguas de sinais em microcomunidades surdas: barreira na comunicação com ouvintes não é linguística, mas social

As línguas de sinais são tão antigas quanto a história da humanidade. Evidências arqueológicas fortalecem hipóteses acerca do uso de sistemas gestuais de comunicação antes do surgimento do homo sapiens, que apresentaram como salto evolutivo, entre outros aspectos, alterações na laringe que permitiram uma modulação mais fina dos sons, o que, consequentemente, levou ao desenvolvimento da fala.

Hoje, no contexto brasileiro, ao pensarmos em línguas de sinais, o que nos vem à mente é provavelmente a libras, a língua brasileira de sinais. Todavia, essa não é a única língua de sinais usada nas comunidades surdas do país. A mesma visão equivocada de prevalência do monolinguismo no Brasil, no que diz respeito aos ouvintes, atinge também as comunidades surdas brasileiras.

Microcomunidades surdas

Existem muitas microcomunidades surdas, espalhadas em diversas regiões do país, que se utilizam de línguas de sinais cujas estruturas gramaticais e vocabulário estão afastados da libras. Por conta do isolamento social ou geográfico e da falta de políticas educacionais específicas, membros dessas comunidades, que não interagem com surdos de fora da comunidade, não chegam a ter contato efetivo com a língua de sinais institucionalizada.

De modo algum, entretanto, essas pessoas estão isoladas linguisticamente da comunidade da qual participam, pois ali a maioria das pessoas, surdas e ouvintes, utiliza uma língua de sinais que podemos chamar de natural ou emergente. Essas línguas de sinais têm estruturas diferentes da libras e, a depender do número de pessoas e de gerações de surdos, podem apresentar maior estabilidade e sistematização.

As pesquisas sobre essas línguas de sinais de microcomunidades têm revelado seu grande potencial para a linguística e para os estudos sobre a deficiência.

Uma história cercada de preconceitos

Infelizmente, as referências históricas às pessoas surdas e às línguas sinalizadas dão conta principalmente de situações de privação de direitos civis e linguísticos, assim como da negação do estatuto linguístico dessas línguas. Ao longo da história, as pessoas surdas foram proibidas de exercer sua cidadania, de obter educação formal e de interagir integralmente na vida social de sua comunidade, formada majoritariamente por indivíduos ouvintes.

Só a partir do final do século XVIII, quando são criadas as primeiras escolas de surdos, vemos verdadeiramente uma mudança em relação a essa marginalização. Orientados pelo trabalho pioneiro do Abade Charles-Michel de l'Épée (1712-1789), fundador da primeira escola de surdos do mundo, em Paris, os educadores de surdos passaram a usar pela primeira vez as línguas de sinais como língua de instrução.

Atribuímos à criação dessas escolas o nascimento das línguas de sinais nacionais, como a Língua de Sinais Francesa, a Língua de Sinais Americana e até mesmo a Língua Brasileira de Sinais, a libras, cuja emergência está relacionada à criação da primeira escola de surdos do país, em 1856, por D. Pedro II, no Rio de Janeiro: o INES, hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos.

O uso das línguas de sinais como língua de instrução em escolas de surdos por todo mundo, no entanto, foi proibido de acordo com deliberação tomada no Congresso de Milão, em 1880. Foram 100 anos de proibição, que impactaram significativamente a educação de surdos. Só entre as décadas de 1960 e 1970 as línguas de sinais voltam a ser aceitas nas escolas de surdos.

Todavia, apenas em 2002 o governo brasileiro reconheceu legalmente a língua brasileira de sinais, libras, através da Lei 10.436. A Lei de Libras, como ficou popularmente conhecida, assumiu oficialmente o estatuto linguístico da libras, com estrutura gramatical própria, que é reconhecidamente diferente do português.

A importância das escolas

No mundo todo, as escolas de surdos têm papel fundamental no desenvolvimento de línguas de sinais comunitárias, uma vez que 95% das pessoas surdas nascem em famílias ouvintes não sinalizantes. É primordialmente na escola de surdos que muitas crianças passam a ter contato com outras crianças e professoras e professores surdos, num ambiente em que a língua de sinais é usada pela comunidade.

É muito importante que a criança surda tenha contato com a língua de sinais o mais cedo possível, porque essa será a única língua que poderá aprender naturalmente. Sem receber esse rico input linguístico, a criança surda passa pelo que alguns especialistas chamam de privação linguística.

O contato da criança surda com a comunidade surda, no entanto, é muitas vezes desaconselhado por profissionais da medicina e fonoaudiologia, que priorizam a reabilitação por meio de técnicas de oralização ou terapias de fala e utilização de próteses auditivas e implantes cocleares.

Como afirma a doutora em linguística aplicada Audrei Gesser, “o discurso (a favor do implante coclear) está claramente amarrado ao ideal de um indivíduo que fala e ouve e esse desejo passa pelo discurso da cura, que prega a recuperação da audição e o desenvolvimento de uma língua oral”.

Esse estímulo ao aprendizado da língua oral é ancorado numa visão capacitista e equivocada, que imputa à criança surda, por um lado, seu isolamento em relação à comunidade surda sinalizante, e, por outro, a adesão compulsória a tecnologias corretivas, como o implante coclear.

Nos centros urbanos, um dos papeis fundamentais das escolas de surdos, como o INES, e das políticas linguísticas advindas da Lei de libras é o de congregar membros da comunidade surdas, viabilizando a comunicação natural em língua de sinais, promovendo a construção da identidade surda. Além disso, essas escolas acabam por fomentar também o desenvolvimento de uma variedade mais padronizada da língua de sinais, usada nos centros urbanos do país, nos cursos de formação de professores e intérpretes de libras, nas escolas bilíngues, nos materiais didáticos, na mídia etc.

Onde tem surdos, tem a língua de sinais

Mas as línguas se desenvolvem independentemente de sua institucionalização, e as comunidades surdas, no mundo inteiro, sempre sinalizaram. Onde tem uma pessoa surda, tem uma comunicação viso-gestual, tem uma língua de sinais.

Pesquisas realizadas pelo Projeto Lucinda Ferreira em comunidades surdas - de Buriti dos Lopes e Várzea Queimada, no Piauí; Tiros, em Minas Gerais; Centro Novo do Maranhão e Centro do Guilherme, no Maranhão; e Vila de Fortalezinha (Ilha de Maiandeua), no Pará - dão conta de uma alta incidência de nascimento de pessoas surdas nessas localidades. Isso representa um fator determinante para o desenvolvimento de uma língua de sinais natural/emergente, pois a grande quantidade de pessoas surdas possibilita que uma língua vá se formando e se sistematizando através das gerações.

De um modo geral, essas microcomunidades adotam, ainda que inconscientemente, políticas linguísticas sociais e familiares que garantem o uso da língua de sinais em diferentes espaços e contextos, permitindo que a experiência da deficiência nessas comunidades seja muito diferente da experiência de pessoas surdas nos centros urbanos.

De certo modo, o isolamento dessas comunidades lhes garantiu seu direito linguístico, mas é preciso reconhecer que os indivíduos surdos se encontram em situação de vulnerabilidade, pois, uma vez que o estado brasileiro não reconhece sua língua, não há discussão nem proposição de políticas linguísticas e educacionais sensíveis à sua condição linguística.

Nesse sentido, sendo a libras a única língua de sinais reconhecida oficialmente, todas as propostas educacionais incluem sua aprendizagem como sendo a única e a mais “correta”. Mas as pesquisas sobre o tema, no Brasil ou no exterior, suscitam ações que envolvem principalmente o reconhecimento do estatuto linguístico dessas línguas emergentes, para que, a partir disso, políticas linguísticas possam ser elaboradas visando tanto a sua preservação quanto a garantia dos direitos linguísticos e civis dessa população.

Essas microcomunidades surdas representam um grande laboratório linguístico, em que o desejo de comunicação e de interação supera todas as barreiras, deixando uma grande lição sobre os conceitos de acessibilidade e inclusão. O contato com essa realidade linguística nos permite entrever um mundo em que a deficiência não impõe uma barreira na comunicação, principalmente entre pessoas surdas e ouvintes.

Essas microcomunidades podem nos ensinar muito sobre inclusão, já que, nos centros urbanos, onde temos um índice populacional maior, as pessoas surdas se sentem de fato isoladas, pois raramente conseguem interagir com pessoas ouvintes, que não se interessam e nem estão conscientizados sobre a necessidade e a importância do aprendizado das línguas de sinais.

Nas microcomunidades surdas, por outro lado, observamos o uso da língua de sinais como uma espécie de língua franca, que une surdos e ouvintes de todas as idades, e permite que as pessoas surdas possam desempenhar diferentes papeis sociais, sendo reconhecidas, portanto, não pela deficiência, mas na sua potência.

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